Em 1894, quando Charles Miller voltou ao Brasil após longa permanência na Inglaterra (onde, segundo pesquisas, teria tido boa passagem no futebol de lá) trazendo na bagagem duas bolas, uniformes, regras e muitas ideias, o filho de escocês e de uma brasileira de origem inglesa não deveria imaginar o quanto o seu entusiasmo pelo esporte aprendido na terra da rainha transformaria o país tupiniquim.
São Paulo era diferente. A Avenida Paulista havia sido inaugurada há apenas três anos, formada pela alta aristocracia cafeeira e pela burguesia industrial. Já nasceu linda, com seus canteiros e belíssimas árvores, embora ainda sem asfalto. Já o Viaduto do Chá existia há apenas dois anos. Apesar disso, a cidade mostrava indícios da movimentada metrópole que se tornaria, com horizontes de pedra. Em 1890 contabilizava apenas 65 mil moradores, porém era transformada rapidamente, recebendo mais e mais pessoas de outros países e demais estados brasileiros, alcançando na virada do século quase 250 mil habitantes.
Além disso a escravidão havia chegado ao fim há apenas seis anos. Havia, no país, uma baixa-estima de muitos em função das memórias de todo o sofrimento vivido durante o penoso período, onde negros eram castigados sem qualquer motivo que o justificasse.
Avenida Paulista no dia da Inauguração, 8 de Dezembro de 1891 - aquarela realizada por Jules-Victor-André Martin.
Já o Rio de Janeiro era, além da capital do país, a cidade mais populosa daquele Brasil remoto. Logo após a sanção da Lei Áurea, em 1888, ocorreu um excedente populacional, com a população sendo acrescida de ex-escravos, migrantes e imigrantes que vieram de todos os lugares. Se em 1890 o município somava cerca de meio milhão de habitantes, receberia até o final do século milhares de novos moradores.
Suas praias e paisagens eram ainda mais lindas e incontáveis vezes mais preservadas. Seus morros ainda exibiam belíssimas florestas e Cristo ainda não vivia sob o Corcovado. Também, não era preciso vigiar a cidade. A violência era bem menor à praticada nos dias atuais. Tanto que, acredita-se que o primeiro morro da cidade a ser ocupado ocorreu somente naquela década.
Por sua vez, apesar de amplamente canalizado – fato que teve início nos séculos anteriores – o Rio Carioca, mais transparente, desfilava suas águas pelos bairros da cidade maravilhosa, nascendo no Corcovado e cortando regiões importantes, até a conclusão do passeio na Praia do Flamengo. Hoje, apenas a cabeceira, dentro da Floresta da Tijuca, permanece limpa e preservada. Uma das teorias aponta que a expressão “carioca” remetida aos moradores da cidade Rio de Janeiro, seria proveniente do rio que ainda, como a brincar de esconde-esconde, revela parte da história do município.
Legenda: Arco do Triunfo sendo erguido no Centro do Rio de Janeiro em 1894.
Crédito: Arquivo Nacional
No país tupiniquim, os ritmos, incluindo os esportes, eram outros. A música, apesar de diversa, era diferente. O carnaval também não concorria com os grandes espetáculos do Século XXI. Quem tentava reger o país era Prudente de Morais, presidente eleito naquele longínquo ano e que assumiu o lugar de Floriano Peixoto.
Ao mesmo tempo que o país crescia, as notícias também. Apesar de não haver Rádio e tão pouco TV, os jornais impressos – em sua maioria outros aos atuais – se multiplicavam no Século XIX, atingindo mais e mais leitores a cada dia.
Naquele ano, quando Charles Miller retornou ao Brasil trazendo boas-novas e a ideia que revolucionaria a cultura do país – mas que, no início seria praticado, sobretudo, pela “elite branca” – o esporte já estava adiantado em outras terras.
O Sheffield Football Club, da Inglaterra, segundo a FIFA o clube de futebol mais antigo do mundo, existia desde 1857 e ao longo dos anos e décadas seguintes, a maioria dos clubes mais importantes do mundo seriam fundados.
O Brasil, naquele 1894, diante da pedra fundamental no futebol do país, estava um tanto atrasado em relação a outros países. Mesmo assim, boa parte das principais competições nacionais e mundiais ainda não eram disputadas como conhecemos hoje.
As antigas mídias do país rascunharam, dia após dia, a história que hoje conhecemos. Ouro Preto-MG ainda era a capital de Minas Gerais, e as nossas cidades e capitais mais importantes eram bem diferentes e mais preservadas. Nossas matas, nossos rios e nossos mares pareciam quadros divinos, pintados pelas mãos artistas de Deus.
Enquanto essa página era escrita, os olhos deste saudoso jornalista apaixonavam-se pelo passado longínquo, enquanto que minha mente, perdida em pensamentos distantes, imaginava nossos brasileiros de ontem, caminhando pelas estradas velhas do país, em busca do futuro que hoje recebemos por presente.
A brisa suave que chegava pelos mares, abençoava o crescimento do país. Sublime como a luz do sol, parecia beijar o Brasil, como uma orquestra silenciosa, capaz de hipnotizar os olhos e os sentidos.
Nossos pântanos e pantanais, bem como nossas matas e matagais, escondiam fauna e flora belíssimas.
Miller talvez observasse nos horizontes ainda esverdeados de São Paulo, o início da construção do principal edifício do futebol no mundo.
Com sua chegada, a primeira página do principal livro sobre a história paralela do país, havia sido escrita.
Mas era preciso muito ainda para escrever a história como a conhecemos hoje. Do entusiasmo de Charles*, jornais do país inteiro precisariam se reinventar, criando editorias voltadas especificamente para o esporte.
Como diria o treinador italiano Arrigo Sacchi cem anos depois, “o futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes”. Na verdade, se tornaria. Ainda não era tão importante assim.
*Embora existam outras hipóteses sobre quem deu “o pontapé inicial” no futebol brasileiro, o nome de Charles Miller é o mais aceito e difundido. Além disso, ele foi o responsável por institucionalizar esse esporte no Brasil, favorecendo sua disseminação. Também foi o primeiro grande jogador a atuar por aqui.
.jpg)
