Se no Brasil o jogo estava ainda nos primeiros segundos, em alguns lugares do mundo o tempo regulamentar já ia um pouco adiantado.
A Inglaterra, mãe do futebol, devolvia a adultos ingleses a infância superada. Naquele ano, em outros moldes e disputando com alguns clubes diferentes dos atuais adversários, o Sunderland se consagrava campeão inglês.
Já os argentinos, apesar de ainda caminharem no amadorismo, com cenários completamente distintos, já haviam marcado alguns gols com as primeiras competições realizadas no país.
Revolução Federalista
O Brasil também era outro. À medida que nossa república primitiva buscava um norte, no Sul era assinado um tratado de paz entre republicanos e federalistas, dando fim a Revolução Federalista.
Em termos de infraestrutura, o Porto de Santos havia sido criado e recebido a primeira embarcação somente poucos anos antes. Praticamente na mesma época em que o país recebera também o primeiro automóvel, de propriedade de Alberto Santos Dumont, que mais tarde ficaria conhecido como o pai da aviação.
Por aqui variadas crenças se misturavam; tinham o próprio espaço. O espiritismo, de forma tímida, ganhava novos adeptos. Pelas mãos operosas de pessoas iluminadas, como Eurípedes Barsanulfo, Bezerra de Menezes e outros, a caridade era ainda mais difundida, repetindo o que inúmeros apóstolos do bem, anônimos ou não, haviam realizado anteriormente.
Adolfo Bezerra de Menezes
Nosso país, de matas lindíssimas e com menos de vinte milhões de habitantes, era um continente de ideias, perspectivas e valores. Nessas terras, braços fortes sustentavam esperança e ajudavam a erguer em importância a nação tantas vezes perdida e sem rumo, apesar de seus vastos horizontes.
Embora a esperança nova, o Brasil literalmente ainda vivia às escuras. A energia elétrica produzida aqui caminhava lentamente para só mais tarde ganhar destaque em todo o mundo.
O telefone havia chegado no país tupiniquim, e, se difundido já naquele ano, seria razão para ligações otimistas de Charles Miller para seus amigos estrangeiros, enquanto o mesmo degustava um saboroso café produzido por aqui aos montes e transportado através das ferrovias que naquela década, embora timidamente, se multiplicavam em nossas terras, permitindo o embarque de sonhos e o desembarque em novos horizontes.
O futebol tocava de primeira para seu próprio desenvolvimento e ao som do choro, alegrava.
Naquele longínquo 1895, em um Brasil muito mais preservado, o futebol tentava a extinção da tristeza.
Se pouco antes, em 1886, os Estados Unidos inauguraram a Estátua da Liberdade, em 1889 a Torre Eiffel arranhou o céu de Paris. Porém, nada se comparava ao brinde de Charles Miller, que, beijado pelos deuses do futebol, empoderou-se, abraçando a alegria que se espalhava por aqui em função da bola.
O pai do futebol no Brasil, naquele 14 de abril, eternizou o nome Várzea do Carmo nos livros, ajudando, inclusive, a reescrever a história nacional. O local, de divino significado para os saudosistas, mudou bastante. É a região do Brás, movimentada e composta por milhares de edificações.
A Várzea do Carmo pintada por Arnaud Pallière Naquele dia, com participação efetiva do brasileiro de sangue britânico, o DNA do Brasil ganhou novas células. Modificou-se para sempre, na metamorfose que mais de um século depois ainda embriaga sentidos e satisfaz corações.
Naquela partida, os jogadores correram para a felicidade. Marcaram gols de ousadia. Foram caridosos com a posteridade. Imortalizaram nomes e redefiniram rumos. Criaram estradas de esperança.
Funcionários da Companhia Ferroviária de São Paulo (São Paulo Railway Company) venceram os trabalhadores da Companhia de Gás de São Paulo (São Paulo Gaz Company) por 4 a 2, com participação efetiva – e segundo algumas fontes, gols - do nosso Rei Charles.
Juntos, sob a regência do maestro Miller, tentaram, sem que soubessem, cicatrizar feridas deixadas pela escravidão e por outras razões.
Embora a participação de negros ainda levasse um tempo a começar, os mesmos retribuiriam a maldade que sofreram, com gols e sorrisos, sendo os principais responsáveis pelo sucesso do futebol praticado aqui.
O tempo passou, mas o Brasil muito deve àquele dia. Em uma viagem no tempo, podemos imaginar toda a grandeza presente na simplicidade.
Em campo, uma bola sem a tecnologia atual, mas que girava na órbita dos sonhos. Nos horizontes esverdeados de São Paulo, os vinte e dois jogadores começavam a edificar um dos maiores monumentos imateriais do mundo.
Naquele dia, o passado beijou o futuro, se transformando no doce presente que nos envolve de emoção singular – ou na pluralidade de sorrisos.