João Badari*
O ano de 2025 marca mais uma etapa do chamado pente-fino do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), voltado à revisão de benefícios por incapacidade. A iniciativa, que tem o objetivo de coibir fraudes e garantir a correta destinação de recursos públicos, levanta também dúvidas e inseguranças entre milhares de beneficiários. Afinal, em tempos de crise econômica e enfraquecimento das redes de proteção social, como distinguir a legítima fiscalização do que se torna, na prática, um mecanismo de exclusão e desamparo?
Ao todo, mais de 600 mil benefícios poderão ser suspensos este ano. A revisão foca especialmente três grupos: beneficiários do Benefício de Prestação Continuada (BPC) com cadastro desatualizado, segurados que recebem auxílio-doença há mais de dois anos sem nova perícia, e aposentados por invalidez há muito tempo sem avaliação médica. A mensagem oficial é de que o governo está apenas "colocando a casa em ordem", mas os impactos dessa política merecem uma análise mais crítica.
A primeira questão que se impõe é de natureza jurídica e constitucional: o benefício previdenciário não pode ser tratado como uma concessão graciosa do Estado, mas sim como um direito adquirido a partir de contribuições ou do cumprimento de critérios legais — no caso do BPC, por exemplo, a renda per capita da família e a condição de deficiência. Ao colocar todos os segurados sob suspeita, o Estado inverte a lógica do direito, partindo da presunção de fraude para só então admitir a possibilidade de manutenção do benefício.
Outro ponto preocupante é a forma como ocorrem as convocações. Embora o INSS utilize diversos canais — SMS, Correios, extratos bancários e o portal Meu INSS —, muitos segurados, especialmente os mais vulneráveis, não recebem ou sequer compreendem essas notificações. A exclusão digital e o baixo letramento funcional ainda são realidade para grande parte da população brasileira, sobretudo idosos e pessoas com deficiência. Quando não compreendem a comunicação, ou não têm acesso aos canais de agendamento, acabam tendo seus benefícios suspensos por ausência de resposta. O que se configura, muitas vezes, como uma penalização por desinformação.
Além disso, há um ônus emocional pouco debatido. Ser convocado a provar novamente a própria incapacidade é, para muitos, um processo humilhante e angustiante. É como se o Estado colocasse o cidadão sob permanente escrutínio, obrigando-o a reviver traumas e a justificar, a cada dois anos, aquilo que os laudos médicos muitas vezes já confirmaram de forma categórica: a impossibilidade de retorno ao trabalho. A reavaliação periódica tem base legal, é verdade, mas precisa ser aplicada com razoabilidade e humanidade.
É importante destacar que existem critérios de isenção: pessoas com mais de 60 anos, com mais de 55 e 15 anos de benefício, e portadores de HIV/Aids estão fora do alcance do pente-fino. Contudo, a aplicação desses critérios nem sempre é automática, e há registros de beneficiários isentos sendo convocados, o que leva a recursos administrativos e, não raro, à judicialização. A jurisprudência tem reiterado que o corte de benefício sem notificação adequada é ilegal. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por exemplo, já decidiu nesse sentido, garantindo o princípio do devido processo legal.
Por fim, se o benefício for suspenso de forma indevida, o cidadão pode recorrer administrativamente e, caso necessário, ingressar com ação judicial. Ter laudos médicos atualizados e específicos sobre a incapacidade laboral é essencial. Como se diz no meio jurídico, "o que gera o direito ao benefício não é a doença, mas a incapacidade para o trabalho".
Não se discute aqui a importância de combater fraudes. O problema está em fazer disso uma política de gestão fiscal, mirando indistintamente a todos, inclusive os mais frágeis, como se a economia de recursos justificasse o sacrifício de direitos. É preciso garantir que o pente-fino não se transforme em rolo compressor, passando por cima da dignidade de quem mais precisa da proteção do Estado.
A revisão de benefícios deve ser feita com critério, transparência e, acima de tudo, respeito. O Estado brasileiro não pode agir como se estivesse em guerra com seus próprios cidadãos — sobretudo aqueles que mais dependem da sua atuação para sobreviver com um mínimo de dignidade.
*João Badari é advogado especializado em Direito Previdenciário e sócio do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados
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