Uma das conquistas das quais Kilma Tenório mais se orgulha ocorreu em uma das fases mais inesperadas de sua vida. Após 24 anos de trabalho como bancária na Caixa Econômica Federal, ela decidiu se aposentar. Estava impossibilitada de conciliar a ocupação com as lesões por esforços repetitivos (LER), mas ainda sentia muita disposição e queria trabalhar. Poucos anos antes da aposentadoria, envolveu-se pela primeira vez com projetos sociais e, desde 2019, é gestora voluntária do Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral (CADI) - coalização de organizações sociais cristãs que atua prioritariamente na proteção à infância, à adolescência e à família por meio do desenvolvimento comunitário em regiões de vulnerabilidade social - em Porto Velho (RO).
Sua comoção com as histórias das crianças de nove e dez anos que não sabiam ler e estudavam na Escola Municipal Ely Bezerra de Salles, localizada na zona leste de Porto Velho, culminou no programa de alfabetização Sala de Leitura. A iniciativa, que deu asas ao imaginário dos alunos e ampliou seus horizontes, atende atualmente 45 crianças. Kilma é apenas uma dentre os 57 milhões de voluntários ativos no país, o que equivale a 56% dos brasileiros com mais de 16 anos, de acordo com a Pesquisa Voluntariado no Brasil 2021, conduzida pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS) e pelo Instituto Datafolha. Estipulada como Dia Nacional do Voluntariado, a data de 28 de agosto representa uma homenagem às pessoas que dedicam seu tempo, suas habilidades e compartilham seus conhecimentos em prol das causas em que acreditam.
Os voluntários são essenciais para que organizações da sociedade civil atinjam seus objetivos e, durante a pandemia, impactaram positivamente a vida de milhares de pessoas. Em sua terceira edição, o levantamento do IDIS, realizado a cada década, mostrou que 34% dos entrevistados eram voluntários, um salto em relação à porcentagem de 25% em 2011. Além da quantidade de pessoas envolvidas com o voluntariado, as horas dedicadas à atividade também tiveram um crescimento expressivo: a quantidade média foi de 18 horas mensais em 2021, em oposição a cinco horas mensais em 2011.
Na percepção dos voluntários entrevistados, sete em cada dez brasileiros não fazem o suficiente para ajudar outros indivíduos. Quando avaliam a própria atuação, quase metade (49%) acredita que faz o que deve para ajudar, mas 39% dos voluntários avaliam que poderiam fazer mais pela sociedade. Com a pandemia da Covid-19, 47% dos voluntários passaram a fazer mais ações voluntárias, principalmente com foco na distribuição de alimentos (61%), roupas, medicamentos, cestas básicas, livros e brinquedos. O estudo constatou que 81% dos entrevistados concordam que a crise sanitária aumentou o interesse das pessoas pelo voluntariado.
Novos caminhos
“Como desenvolvi LER e me aposentei, o envolvimento com projetos sociais veio à tona e vi que poderia trabalhar com isso. Procurei meu pastor para saber o que tinha para fazer na igreja de segunda a sexta. Ele me falou que tinha um sonho de fazer um projeto social, um departamento da igreja que cuidasse dessa área. A igreja tinha recebido um terreno em um bairro carente de Porto Velho, mas precisava de voluntários e alguém que encabeçasse isso. Eu me encontrei e me apaixonei pelo voluntariado”, conta Kilma.
O relato da gestora reforça a constatação da pesquisa de que o voluntariado está relacionado ao conhecimento de outras realidades, à cidadania, à transformação e ao desenvolvimento pessoal. É também uma oportunidade para descobrir novos caminhos profissionais. Enquanto estudava sobre impacto social, a igreja evangélica que frequentava arcou com os custos de sua participação no Seminário de Desenvolvimento Comunitário (SEDEC) em 2016. Criada pelo CADI, a formação de caráter intensivo apresenta conhecimentos teóricos e práticos para o desenvolvimento de ações relevantes para a transformação social a partir de uma cosmovisão cristã.
“O SEDEC foi um divisor de águas na minha vida, tive uma visão mais aberta sobre como trabalhar em comunidade. Conheci pessoas para quem podia fazer perguntas e para me orientar, me senti acolhida e segura. Formalizamos a associação da igreja, chamada Projeto I, e começamos a trabalhar com a comunidade”, afirma.
Em suas andanças pelos arredores de Porto Velho, ela começou a conhecer melhor as pessoas até reunir um grupo de voluntários e iniciar atividades de recreação infantil aos sábados. Em 2019, Mauricio Cunha, presidente do CADI e atualmente Secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a convidou para assumir a gestão do CADI sediado no município de Ji-Paraná, que estava inativo há quatro anos. A unidade foi transferida para Porto Velho e ela assumiu o novo desafio.
Projeto de alfabetização de crianças emociona educadores de escola pública
Pouco tempo depois, Kilma conheceu as crianças de nove e 10 anos que frequentavam a organização e não conseguiam decifrar o que estava escrito nas orientações das aulas de musicalização oferecidas pelo CADI. Inconformada, procurou o diretor da Emef Ely Bezerra de Salles e descobriu que o problema era muito comum e as crianças passavam de ano sem aprender a ler. A gestora participou de uma oficina chamada Educação para a vida, que orientava educadores na prática de leitura com crianças alfabetizadas. No entanto, ela sabia que o caminho para chegar até aquele patamar seria mais longo. Conseguiu uma apostila de alfabetização e se sentiu motivada. Convidou uma amiga para ajudar as crianças a lerem e propôs que o diretor encaminhasse mais crianças da escola para o projeto. Nascia ali a Sala de Leitura, que tem emocionado cada vez mais pessoas.
“Em 2019, ficamos muito motivadas. A escola ficou extremamente grata pelo trabalho, fizemos uma festa de encerramento. Em 2020, começamos um programa mais bem-estruturado com professoras mais fixas. Acho que deu tão certo porque dávamos amor, eles se sentiam extremamente acolhidos, demonstramos amor e a escola percebeu a diferença nas crianças. Recebemos professores que perguntavam o que fizemos porque a criança mudou completamente o comportamento na sala de aula”, diz.
Hoje, o Sala de Leitura desenvolve tanto a alfabetização como a interpretação de textos das crianças que sabem ler. “Talvez o fato de esse projeto ter surgido de uma necessidade demonstrada pela comunidade tenha feito dele algo tão forte. Antes eu culpava a escola pública, mas percebi que há uma evasão escolar muito alta porque as crianças têm uma instabilidade grande. Moram cada hora com uma pessoa, são muito vulneráveis emocionalmente. Você vai tratar um problema e acaba descobrindo vários outros, é muito difícil se manter emocionalmente distante”, confessa.
Médico dedica vida aos projetos sociais
Nas redes sociais, Thomas Gregory se define como um médico missionário. Ao longo de quase 50 anos, construiu uma sólida trajetória no terceiro setor e trocou a vida urbana de São Paulo pelo sonho de atuar no sertão nordestino em 1999. Fundador do CADI em Aratuba (CE), Thomas é presidente da unidade e tem uma rotina bastante agitada. Às segundas, quartas e sextas, ele é plantonista, nas terças e quintas, atua em clínicas do sertão do município e ainda precisa encaixar na agenda as atividades da ONG. “Todas essas funções que exerço representam nossa vocação, que é servir ao próximo com alegria. O voluntariado é cumprir nossa missão na Terra e servir ao nosso próximo”, ressalta.
Inspirado pelos pais e pela escola, envolveu-se com projetos sociais durante o Ensino Médio, quando tinha 16 anos. Durante a adolescência, Thomas teve acesso a uma educação que oferecia uma visão de desenvolvimento integral e diversas oportunidades de trabalho na área social. Guiado pelo pai de origem inglesa, o jovem também participava de um grupo de escoteiros, auxiliando em suas atividades voluntárias em São Paulo (SP). Nascido em uma família de classe média, o voluntariado tornou-se uma parte permanente e indispensável em sua vida.
Participou de incontáveis projetos e, aos finais de semana, visitava asilos e ia a uma creche na comunidade de Buraco Quente, na zona sul de São Paulo, onde desenvolveu um projeto de saneamento durante a graduação em Medicina. Nessa época, começou a frequentar a igreja batista e ajudou no desenvolvimento comunitário de jovens e adolescentes. Posteriormente, o médico conheceu o sertão do Piauí e, ao lado da esposa, percebeu seu propósito de atuar profissionalmente no Nordeste, no futuro.
Ela era assistente social e, ao longo dos anos, ambos iniciaram projetos educacionais e culturais com adolescentes, especialmente com oficinas de incentivo à leitura, reforço escolar, aulas de culinária e artesanato. “Começamos um projeto com adolescentes, fazíamos café da manhã, almoço, assinamos jornais e revistas. Minha esposa ensinou o gosto pela leitura. Ela tinha muitos livros”, relata.